Por Raphael Zarko e Vicente Seda
Rio de Janeiro

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Bico ou profissão? O dilema da arbitragem brasileira coloca na mesma balança árbitros que ganham mais de R$ 100 mil em um Campeonato Brasileiro, outros que sequer entram no sorteio para as competições nacionais e uma realidade de atrasos e pagamentos abaixo de um salário mínimo. O tema é complexo e a discussão, antiga. Desde outubro de 2013, por decreto da presidente Dilma Rousseff, há um reconhecimento da profissão, mas, na prática, pouco mudou. O presidente da Comissão Nacional de Arbitragem (Conaf), Sérgio Corrêa, não vê chance de profissionalização sem a inclusão da tecnologia e avalia risco de surgimento dos “chinelinhos do apito” com salários para árbitros e assistentes. O presidente da Associação Nacional dos Árbitros de Futebol (Anaf) questiona o vínculo dos juízes com as comissões de arbitragem e Jorge Rabello, representante do Rio de Janeiro, fala em “utopia de profissionalização” enquanto a Lei Pelé não for aplicada às Consolidações das Leis Trabalhistas (CLT).

A reportagem que debate a profissionalização é mais uma da série de reportagens do GloboEsporte.com sobre a arbitragem brasileira. No primeiro dia, as altas notas das atuações dos árbitros na Série A do Brasileiro em relatório produzido anualmente pela Comissão Nacional dos Árbitros de Futebol (Conaf) foram o assunto. No segundo dia, o tema foi a CBF ter ligado o alerta contra a manipulação de jogos no Brasil nove anos após o escândalo conhecido como “Máfia do Apito”, em que jogos foram anulados devido à venda de resultados pelo ex-árbitro Edílson Pereira de Carvalho, em 2005. Depois, a eficiência na marcação de impedimentos e os erros dos bandeirinhas foi outro tema abordado.

Um dos chavões mais antigos quando se debate a qualidade dos árbitros brasileiros, a cobrança pela profissionalização dos juízes e bandeirinhas está na boca de treinadores, jogadores, jornalistas e torcedores a cada rodada e cada erro nas partidas. A realidade, no entanto, mostra que há parcela representativa da classe que vive sim dos vencimentos do futebol. Em média, um juiz do quadro da Fifa ou da CBF apita de 15 a 20 jogos por ano no Brasileiro da Série A. A taxa nesses jogos pode chegar a quase R$ 4 mil por partida (veja o quadro com a comparação das taxas da arbitragem abaixo) e há finais de campeonato – o Carioca é um exemplo – que pagam até R$ 8 mil ao juiz.

O presidente da Associação Nacional dos Árbitros, Marco Antônio Martins, lembra que a maioria dos árbitros e assistentes que trabalham com futebol são professores de instituições públicas ou funcionários do estado, o que lhes garante, inclusive por lei federal, o direito a se ausentar do ofício para atuar nas partidas sem prejuízo ao seu ofício convencional.

– Se o cara tem que apitar quarta e ele é obrigado a sair um dia antes, sai na terça e volta na quinta. Como vai ter emprego fixo? Isso é uma falácia. O que mais temos hoje é um grande número de árbitros que são funcionários públicos e que se beneficiam justamente da lei federal. Ela (a lei) os protege para a saída deles para apitar jogo. Então, ele é personal trainer, é professor de educação física em colégio do estado, militar, da marinha, do exército – enumera Martins.

Em realidade semelhante à de jogadores de futebol no país, se há uma elite que pode receber bem por algumas horas de trabalho, há um cenário desolador de falta de pagamento, de juízes e assistentes que bancam passagens e combustível e penam para receber reembolso e um crescente número de problemas levados até ao Ministério do Trabalho.

– A diferença das taxas é gritante. Em São Paulo, às vezes, o árbitro ganha até mais do que no Brasileiro. E em Teresina, em Brasília, tem juiz que ganha R$ 300 por jogo. Imagina o auxiliar, que ganha metade? Temos casos em Rondônia, Roraima, Acre de taxas atrasadas, coisas que não são cumpridas, como por exemplo o que diz no estatuto do torcedor. Lá está escrito claramente: o juiz deve ser remunerado previamente na partida. Agora, temos conhecimento de juiz que paga R$ 4 mil, R$ 5 mil de passagem e depois fica a ver navios. Então está longe de estar tudo às mil maravilhas – contesta Martins, reconhecendo, no entanto, os avanços na gestão de Sérgio Corrêa.

Corrêa e Martins estão em lados opostos quando se discute os custos da profissionalização. Para o presidente da Conaf, “não tem federação que consiga bancar”, por exemplo, além de eventuais salários e passagens, centros de treinamento para capacitação dos árbitros e assistentes. Outra questão problemática para ele seria a logística para agrupar os árbitros de futebol.

– Mais de 80% da Europa dá para colocar aqui dentro. Onde vamos treinar esses árbitros? Por exemplo, temos no Tocantins um árbitro internacional, em Rondônia outro, como vamos montar essa logística? Vou trazer os árbitros para o Rio, vão morar aqui com a família? Vão deixar seus empregos? Se eles tiverem temporada ruim, vão ser demitidos e vão trabalhar onde depois? No Brasil, a dimensão atrapalha bastante, mas na estrutura hoje temos uma tranquilidade maior para trabalhar – avalia Corrêa.

O representante da associação dos árbitros discorda citando as altas cifras pagas em direitos de transmissão pela TV. Sérgio Corrêa estima gastos de R$ 6 milhões mensais, calculando salário-base de R$ 15 mil para 200 juízes. O presidente da Conaf ainda apresenta uma abordagem polêmica com essa possibilidade de remuneração fixa para o quadro de árbitros brasileiros.

– Só de salário fica um custo alto, sem falar no entorno, que é pagar preparador físico, ACADEMIA… Mas, imagina, você é meu empregado, vai ficar em casa, vai treinar, vai ter responsabilidade e vai ganhar R$ 15 mil por mês… Rapaz, aí vai chegar no jogo, um cara vai e pede dispensa. Vai aparecer o chinelinho do apito. Não é que o medo seja esse, mas é inevitável – aposta o presidente da Conaf.
O presidente da Anaf rebate e afirma que a relação da produção do árbitro com uma carreira profissional seria igual à qualquer outra.

– Não vai ser criado nenhum chinelinho. Estamos falando de contrato de trabalho, de prestação de serviço. Você é jornalista, se você não produzir, você não vai embora? E outra: não falta dinheiro. O quadro da CBF é composto por 600 árbitros. Há necessidade disso tudo? Temos árbitros que nunca apitaram jogo da Série A, só estão no quadro para ganhar a camisa com o escudo da CBF. Por que não deixam a arbitragem cuidar da arbitragem? Por que não tem a independência das comissões de arbitragem? Acho que é uma questão de poder. Quem tem o poder não quer perder o controle das coisas – critica Martins, que pede o direito efetivo da classe se fazer representar em discussões como esta.

O presidente da Coaf-RJ, Jorge Rabello, levanta outra questão: a legislação. Ele explica que, apesar do reconhecimento da profissão pelo decreto da presidente Dilma, não houve mudanças na prática. Ele acredita que a profissionalização só será possível a partir do momento em que os árbitros tiverem os mesmos direitos trabalhistas que os atletas.

– A primeira coisa a ser analisada é a seguinte: os árbitros já são profissionais. A Dilma regulamentou por decreto. Já é profissão. Mudou o quê? Nada. Por que não mudou? Porque não basta profissionalizar, tem de criar estrutura e regulamentar a profissão. Se profissionalizasse, a CBF não gastaria nada, ela não tem quadro de árbitro. Os quadros são das federações, o primeiro custo seria das federações, aí está o X do problema. Então a profissionalização esbarra em uma coisa muito simples: quem vai pagar a conta? Os árbitros, pelo decreto, estão automaticamente vinculados à Lei Pelé, mas com uma diferença, apenas nos artigos inerentes à arbitragem. Os atletas são vinculados à Lei Pelé concomitantemente à CLT. Aí os clubes têm de assinar carteira, depositar FGTS, na profissionalização dos árbitros caparam isso. Se fosse da mesma forma que os atletas, aí sim o processo iria começar. O resumo dessa profissionalização é isso: só existe uma possibilidade no Brasil, fazer da mesma forma como foi com os atletas. Aí não haveria saída. Fora isso, não tem profissionalização, é utopia.

“Com tecnologia não precisa de profissional”
A questão da tecnologia para proteger os árbitros das críticas implacáveis auxiliadas pelas dezenas de câmeras espalhadas por cada arena é considerada fundamental quando se discute profissionalização para Corrêa. Isso porque avalia que as críticas já são duras sem os árbitros terem o rótulo de profissionais. Quando tiverem, crê que pressão sobre os árbitros aumentará ainda mais. A tecnologia, portanto, seria um escudo na visão do presidente da Conaf. Por outro lado, analisa também que, com a tecnologia, “não precisaria nem de profissional”.

– O árbitro é amador, é massacrado porque é amador, se for profissional, nesses termos, ele vai ser fuzilado. Você não aceita o erro de um amador, imagina aceitar erro de um profissional. As palavras vão ser demissão… Só com tecnologia, com tecnologia não precisa de profissional. Se fosse fácil, já tinha sido feito. Ninguém quer ficar toda segunda-feira apanhando de vocês (imprensa). Não sou masoquista. Vai melhorar com profissionalismo? Sim, claro, óbvio que melhora a parte física, psicológica, não tenha dúvida que o cara estar num HOTEL, numa casa… Tiro por base a Copa do Mundo. São três anos de preparação, vão para os melhores hotéis, quarto isolado, carro à disposição, massagem, luxo, mas erram, p… – desabafou.

Durante a Copa do Mundo de 2014, a Fifa utilizou a Tecnologia da Linha do Gol com um sistema de câmeras – sete em cada baliza – para apontar com precisão quando a bola passou ou não da linha do gol. A entidade internacional deixou o aparato como legado, mas acabou não sendo aproveitado pela CBF por não estar disponível em todos os estádios dos campeonatos.

– Teria que ter em todos os estádios, se tivesse teríamos a igualdade de condição, não podemos ter num jogo no Morumbi, outro na Arena Corinthians, no Rio, no Engenhão, outro no Mineirão, no Independência. São situações diferentes. Se acontece só em arenas que têm a tecnologia vamos ter condições de saber (se a bola entrou ou não). Se acontecer nos que não têm, não vamos ter condições de saber. Então é melhor que fique na falha humana. Se deixar na tecnologia em tese é zero erro, não tem discussão. Mas seria desigualdade na mesma competição – explicou Corrêa.

O presidente da Conaf mantém uma posição contrária à tecnologia por acreditar que fará diminuir o interesse pelo futebol e se defende de alegações de que, com isso, seria a favor do erro. Considera que o erro de o árbitro faz parte do imponderável do futebol, bem como um erro de um atacante que perde uma chance clara de gol.

– Eu acho o seguinte, se o árbitro tiver a tecnologia, eu acho, acompanho há muitos anos, vai ter redução no interesse pelo futebol. Eu falo isso e dizem: “Ele é a favor do erro!”. Não, não sou a favor. Sou a favor de mais trabalho, mais treinamento, fica como é o jogador. Jogador não tem interesse de chutar a bola para fora, assim como arbitro não tem interesse em errar. Tudo que fica na falha humana, é jogo de erros, se todos atacantes fizessem gols era uma goleada em cima da outra, se todos goleiros defendessem os chutes era zero a zero. Habilidade ou falha, sempre existe.
Adicionais fazem juízes correrem menos

Uma notícia já anunciada pela CBF também foi abordada com os presidentes da Conaf e da Anaf: o fim dos dois assistentes extras posicionados na linha de fundo. Sérgio Corrêa citou, entre as justificativas, uma estatística mostrando que os árbitros principais passaram a correr menos com a inclusão dos assistentes. Marco Antônio Martins rebate afirmando que foi justamente essa a orientação passada pelos instrutores.

– Uma das razões (para o fim dos assistentes extras) é a parte física do árbitro. Como tem dois ali, ele meio que desacelerou. Temos um trabalho que está sendo feito com um professor em Santa Catarina, trabalho científico, ele está monitorando Série A e Série B. Ele comprovou que na Europa eles (árbitros) estão correndo 12km por jogo, no Brasil era 10km e caiu para 8km. Então o árbitro brasileiro, inclusive, ganhou um pouquinho de PESO, porque não se exige muito fisicamente dele. Tem vantagens, que ele está mais descansado para tomar decisões, mas tem desvantagens, que ele meio que se acomoda. E as decisões que aquela pessoa toma, nem sempre ele segue, porque ele tem visão muito clara da situação de campo. É como aquele cozinheiro, quando dois mexem na panela ou falta sal ou sobra sal – analisa Corrêa.

Na visão do presidente da Anaf, os assistentes extras são válidos.

– Não foi árbitro que correu menos. É justamente a orientação dos instrutores que foi nessa linha: a de que deixasse uma parte do campo para os adicionais. E te pergunto: o último jogo do Palmeiras, o pênalti dado foi pelo adicional. Se o Palmeiras tivesse caído sem esse pênalti, já valia a pena ter o adicional? Se perguntar para o Sport, Chapecoense, que o adicional viu bola dentro do gol e fora do gol, esses clubes achariam que não era necessário? Acho que isso passa muito pela questão financeira. Sempre se quer economizar em cima do árbitro. É mais questão financeira do que técnica. Adicional é fundamental, é necessário, não temos tecnologia, um monte de câmera contra a gente, então quanto mais árbitros tiver em campo é melhor. Claro que vão ter erros, isso faz parte da arbitragem.